sábado, 25 de outubro de 2008

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“Nesse mesmo dia, os EUA lançaram mais de 300 mísseis sobre Bagdade. Tu existes em época de guerra.” (21.III.03, no caderno de capa preta)
Quando tu entras em casa, vinhas a correr para os meus braços de saudade, mas hoje tens o corpo de mulher feita. Procuravas-me com os olhos arregalados de alegria até ao meu colo, ontem fui te levar cedo ao aeroporto e, a seguir ao check-in, deste-me um beijo despachado no rosto e mal te dignaste ao tempo de me olhares nos olhos, porque, como tu já sabes, foi assim que eu e a tua mãe te escolhemos o nome, enquanto jantávamos na mesa da sala, acompanhando as notícias da guerra pela televisão.
Depois, à noite, lá nas gavetas do escritório, fui dar com um antigo caderno de capa preta, tinhas tu oito semanas quatro dias e dezoito milímetros
«Estão a ver isto aqui a pulsar?» Disse-nos o doutor da ecografia. «…é o que dará origem ao coração»
«E o sexo? Já dá para saber?» Perguntei-lhe.
Mas eu tinha a certeza de pai de que tu serias quem já és hoje, por isso não hesitei em sugerir o teu nome e a mãe anuiu «É bonito!», os teus olhos em criança eram incrivelmente parecidos com os da tua mãe em adulta, ou os da tua mãe iguais aos teus, ao entrares em casa és a mulher de compromissos, vais para o teu quarto e com a mania agora das magrezas jantas a terrina de sopa uma peça de fruta eu pergunto-te só para te olhar uma vez mais nos olhos (fingindo a possibilidade de reunir os fragmentos do tempo) «Como te correu a semana na faculdade?», o teu silêncio não se atrapalha com o som das colheradas a arranhar a porcelana, em pequena era uma carga de trabalhos para fazer com que tu comesses a sopa toda, tínhamos uma cumplicidade olho-no-olho tu percebias que eu procurava nos teus olhos algum reencontro de remorsos comigo mesmo.
Quando entras em casa, a brincar, és tu que te escondes matreira a sorrir por trás do cortinado da sala, a mãe vem a ralhar contigo, fazes igual a ontem no aeroporto beijas-me a fugir no rosto queixas-te da barba por fazer e não te dedicas a olhar-me olho-no-olho, quando corrias de medo da mãe a ralhar contigo e vinhas à protecção dos meus braços. É costume pensar que a saudade é ausência, mas entre nós a saudade é presença que trazes nos olhos iguais aos da tua mãe tuas tias teu avô, saíste toda ao lado materno. Entras em casa como um pássaro camuflando o movimento em voo nocturno, mas é a história completa da nossa família que hoje te pesa nos olhos

5 comentários:

Unknown disse...

que lindo texto de saudade, amor de pai, mistura de tudo, que vc deve ter escrito com olhos d'água, assim como fiquei ao ler.

bjosss...

Sandra Costa disse...

acho que conversamos sobre saudade um dia desses.. estou surpresa com a sua nova opinião sobre isso.

Conde Vlad Drakuléa disse...

Bravo, texto de uma beleza rara!!!
Grande abraço do conde! :)

Liana Andra Marques disse...

prometo que visito, mas não sou muito de comentar. A não ser que me identifique muuuuuuuuuuuito ou esteja num estado de espírito especial.

De qualquer modo, obrigada pelas melhoras ;)

mundo azul disse...

...é assim mesmo! Por vezes, queremos ter de volta as nossas crianças... Mas, isso já não é possível! Eles crescem, viram adultos e optam pela sua própria forma de viver...

Aceitá-los como são, é a única forma de mante-los unidos a nós...

Seu texto me emocionou, amigo!

Beijos de luz e muita alegria no seu coração!!!