terça-feira, 28 de outubro de 2008

(continua a partir da última palavra do post anterior) símbolo fora de moda, eras uma rapariga crescida eu passai a evitar o flagrante nos olhos por causa dos cabelos grisalhos as rugas o teu mau feitio pelas manhãs
amanheci antes do dia é Outono o plátano por trás da casa não resiste ao vento sento-me a observá-lo vergado, as folhas secas voam escarrapachadas na janela, está frio o vento se enlaça no espaço vazio das árvores, o café aquece-me as mãos, hoje é o dia dos teus anos amanhã o meu quando o fim de Outubro era mês de festa gorda cá em casa, Maria Helena convidava o bolo as velas os doces as fotos as entradas chegavam os nossos amigos no jardim «parabéns a você, hoje é dia de festa, cantam as nossas almas!» eu na churrasqueira recebeste todas as prendas que nos pediste e outras tantas generosidades de quem te ama até ao fim dos dias
passam as horas perras em frente à janela sinto um desconforto nos sentidos porque necessito agarrar no telefone só para te ouvir a voz quando vinhas a saltitar pela casa até ao meu colo e dizer-te
«Estou grávida.» A paternidade é urdidura irreversível de afectos fui eu que te dei o nome em época de guerra tenho o receio atrapalhado de te incomodar a esta hora da manhã em Groningen quando eu sei que já fustiga o frio do Mar do Norte, e deves ter o namorado holandês contigo na cama, acordam e vão de bicicleta à Torre Martini sobrevivente de Guerra para beberem café, só te quero ouvir a voz dizer-te
«Parabéns»
Mas tens esse mau feitio logo de manhã cedo até dás pontapés de bico no cu aos aleijados se for preciso, mas não te incomodem de manhãzinha
«Estou grávida.» Disse-me a tua mãe ao telefone
É a minha obrigação de pai telefonar-te no dia dos teus anos mesmo que eu não me tenha emocionado com a notícia da tua existência fecundada, emocionei-me e vais me dar um pontapé no cu
«Pai, decidi ir estudar para a Holanda»
Nunca conversámos olho-no-olho, começaste a sentir vergonha de mim envelhecido bolsas de gordura nas olheiras o corpo disforme todas as semanas não te falta o dinheiro transferido

«Estou grávida.» Quando Maria Helena me telefonou, eu estava no escritório a trabalhar e não te senti instantaneamente filha. Com o tempo não te fui suportando distante do meu tacto que se foi tornando volátil, és uma mulher de compromissos, sou um estorvo velho tacanho com o saudosismo piegas deste País enfadado. Não faz parte dos tempos o pai ter a urgência da filha

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

(continua a partir da última palavra do post anterior) na expressão húmida e cintilante que se adensa à procura do balcão da TAP de mim sempre a trabalhar no escritório vens a correr para o meu colo, porque tens sempre a mesma sentença silenciosa para me exarar olho-no-olho:
Talvez um dia também faças o mesmo que eu o meu pai o pai dele ousámos desfazer em nossas casas, e não te demovas de aterrar em Schiphol apanhar o comboio até Groningen para concluíres o teu curso de História da Arte vais ficando por lá encontras outro alguém que te ama casas tens os teus filhos e o desígnio de palimpsesto para todos nós seja vivermos a prazo afastados uns dos outros de geração em geração voluntária.
«Deu positivo. Estou grávida.» De início, não me concentrei na voz de Maria Helena ao telefone não me aconteceu o sentimento instantâneo da paternidade à noite tê-la-ia delicada nos meus braços porque foste desejada planeada a todo instante, deslizando a mão sobre o ventre onde fecunda o futuro da tua existência
(volto do aeroporto para Leiria estás a aterrar em Amesterdão não tarda)
«Deu positivo.» Estás incrustada na gravidez da tua mãe, mas se queres que te diga não me emocionei com a tua realidade recém-chegada porque estava no escritório a trabalhar, à noite eu e a mãe fomos ao Restaurante de onde se vê o castelo a flutuar sobre a cidade, onde cresceste a tua infância teus amigos a escola o ballet no Orfeão tua adolescência no Terreiro com ordens expressas de chegares cedo à casa os namoricos os copos, tua cidade que vais trocando a cada vez que aterras em outro país, nessa noite bebi além da conta embriaguei-me sem tropeçar nos sentidos amei Maria Helena penetrei-a com o pudor velado de não transgredir o milagre da tua fecundação
a paternidade não é uma epifania, descobri que
volto do aeroporto para Leiria estás a aterrar em Amesterdão não tarda és uma mulher de compromissos falas fluentemente o inglês, conforme me aproximo de casa enjoa essa morrinha de me habituar a ser pai a distância como um utensílio que se torna apenas figurativo

sábado, 25 de outubro de 2008

1
“Nesse mesmo dia, os EUA lançaram mais de 300 mísseis sobre Bagdade. Tu existes em época de guerra.” (21.III.03, no caderno de capa preta)
Quando tu entras em casa, vinhas a correr para os meus braços de saudade, mas hoje tens o corpo de mulher feita. Procuravas-me com os olhos arregalados de alegria até ao meu colo, ontem fui te levar cedo ao aeroporto e, a seguir ao check-in, deste-me um beijo despachado no rosto e mal te dignaste ao tempo de me olhares nos olhos, porque, como tu já sabes, foi assim que eu e a tua mãe te escolhemos o nome, enquanto jantávamos na mesa da sala, acompanhando as notícias da guerra pela televisão.
Depois, à noite, lá nas gavetas do escritório, fui dar com um antigo caderno de capa preta, tinhas tu oito semanas quatro dias e dezoito milímetros
«Estão a ver isto aqui a pulsar?» Disse-nos o doutor da ecografia. «…é o que dará origem ao coração»
«E o sexo? Já dá para saber?» Perguntei-lhe.
Mas eu tinha a certeza de pai de que tu serias quem já és hoje, por isso não hesitei em sugerir o teu nome e a mãe anuiu «É bonito!», os teus olhos em criança eram incrivelmente parecidos com os da tua mãe em adulta, ou os da tua mãe iguais aos teus, ao entrares em casa és a mulher de compromissos, vais para o teu quarto e com a mania agora das magrezas jantas a terrina de sopa uma peça de fruta eu pergunto-te só para te olhar uma vez mais nos olhos (fingindo a possibilidade de reunir os fragmentos do tempo) «Como te correu a semana na faculdade?», o teu silêncio não se atrapalha com o som das colheradas a arranhar a porcelana, em pequena era uma carga de trabalhos para fazer com que tu comesses a sopa toda, tínhamos uma cumplicidade olho-no-olho tu percebias que eu procurava nos teus olhos algum reencontro de remorsos comigo mesmo.
Quando entras em casa, a brincar, és tu que te escondes matreira a sorrir por trás do cortinado da sala, a mãe vem a ralhar contigo, fazes igual a ontem no aeroporto beijas-me a fugir no rosto queixas-te da barba por fazer e não te dedicas a olhar-me olho-no-olho, quando corrias de medo da mãe a ralhar contigo e vinhas à protecção dos meus braços. É costume pensar que a saudade é ausência, mas entre nós a saudade é presença que trazes nos olhos iguais aos da tua mãe tuas tias teu avô, saíste toda ao lado materno. Entras em casa como um pássaro camuflando o movimento em voo nocturno, mas é a história completa da nossa família que hoje te pesa nos olhos